Até onde o amor de mãe e filho é capaz de levar? A trajetória da Turma do Jiló começa com a história pessoal de Carolina e João Videira. Uma história emocionante, que nos faz perceber o quanto ainda há para descobrir no mundo e o quanto cada atitude pode fazer toda a diferença. Nascido com uma raríssima deficiência, João demorou cerca de 3 meses para demonstrar os primeiros sinais de um desenvolvimento neuropsicomotor não adequado para a idade e uma hipotonia bastante considerável. Mesmo assim, ao completar 1 ano e meio, a família de João optou por uma escola regular, disposta a tudo para que o menino se desenvolvesse.
A época, ainda não existia a lei de inclusão, e João poderia ter a recusa da escola. Carolina então procurou o colégio em que estudou e que ficava próximo de sua casa. “Era a escola que eu gostaria que meus filhos estudassem, com ou sem deficiência. Eu estudei naquela escola, então acreditava que o relacionamento iria me ajudar, como de fato me ajudou”, relembra.
A escola pediu então uma reunião para conhecer o filho de Carolina, antes de dizer que ele poderia estudar lá. “Com 2 anos, meu filho foi para a escola com a babá junto para cuidar dele. E aí a gente viu o despreparo da escola”, relembra a mãe. Detalhes simples, como a carteira escolar em tamanho e cores diferentes de todas as demais crianças, mostravam que o local não estava preparado para a inclusão. Mas o ponto mais significativo foi quando, com 3 anos já estudando, Carolina começou a notar que outras crianças traziam lições para casa, mas para João nada era pedido.
“Eu pedi uma reunião na escola para saber porque o João não fazia lição de casa. E aí a escola se reuniu comigo muito respeitosamente, e reforçou para mim que o João teria um convívio social na escola, e não um desenvolvimento pedagógico”. Fisioterapeuta por formação, Carolina a esta altura já era também mestre em neurologia e CBA em gestão empresarial. “E aí tudo na minha cabeça fez sentido, minha faculdade de fisioterapia, o mestrado em neurociência, tudo pareceu se encaixar. Como um pedagogo não acreditava no desenvolvimento cerebral de uma criança? Como alguém pode dizer que a criança não aprende?”, perguntava-se.
Um ano sabático
Carolina então pediu demissão da indústria farmacêutica em que atuava e passou 3 meses em Boston (EUA) para entender como ajudar o filho. De lá trouxe um aparelho de comunicação alternativa para o João, o Tobii I. Trata-se de uma máquina capaz de fazer a leitura do movimento dos olhos de João. Os olhos passam a fazer o movimento similar ao de um mouse e com isso ele consegue fazer as escolhas pelo computador. Foi assim que Carolina descobriu que aquela criança, que estava com 5 anos de idade, já sabia escrever o próprio nome e estava praticamente alfabetizado. “E tudo isso mesmo matriculado em uma escola que não apostava no desenvolvimento pedagógico”, afirma a mãe.
Após a experiência, Carolina entendeu que estava na hora de unir os conhecimentos de neurociência e fisioterapia, além de 6 anos de experiência na indústria farmacêutica, à educação. “Voltei à faculdade, fui fazer uma pós-graduação em educação inclusiva e atualmente estou cursando doutorado em violência escolar focada em preconceito e comecei a estudar escolas inclusivas pelo mundo. Eu fui viajar e conheci as metodologias de escolas que de fato não deixam nenhuma criança para trás e como a diversidade está presente nessas escolas”.
Educação inclusiva no Brasil
E foi assim que Carolina percebeu que educação inclusiva envolvia além da criança com deficiência. Dizia respeito a toda a diversidade e todo tipo de preconceito que se manifesta na escola, como religioso, estético, cultural, racial ou de orientação sexual. “A escola impõe uma série de barreiras. Além disso, o ensino baseado em uma média, que não leva em conta as particularidades de cada criança, não está em acordo com o que se pratica nos países desenvolvidos que tem os melhores índices de educação”.
Carolina destaca que a educação inclusiva no mundo reforça que cada aluno aprende de uma maneira diferente e com tempo de aprendizagem diferente. “Aqui no Brasil, a gente fala muito da dificuldade de aprendizagem dos nossos alunos, mas a gente olha muito pouco para dificuldade de ensinagem dos nossos professores”, revela.
“Eu sou muito grata a minha vida e os privilégios que eu tive, mas eu não podia deixar esse conhecimento beneficiar só o meu filho. Tem muitos outros Joãos e muitas outras Marias no mundo que também precisam de atenção” – Carolina Videira, fundadora da Turma do Jiló.
Em 2016, um ano depois de sancionada a lei brasileira de inclusão, Carolina deu vida a Turma do Jiló, em parceria com o Ministério Público. “A lei é muito clara e completa. Ela traz a responsabilidade da escola e da formação do professor, mas a política pública que a gente tem não atende à legislação. E aí eu falei: ‘pronto, aqui eu posso estruturar um projeto e ajudar a política pública, a sociedade e todas essas crianças que estão na escola’”. O projeto conta atualmente com mais de 25 membros, entre colaboradores, membros e o conselho.
Onde estão as pessoas com deficiência? Confira este depoimento de Carolina Videira:
https://www.facebook.com/turmadojilo/videos/2247784442131707/
Como funciona o projeto de inclusão
Com duração de 2 anos o Programa de Educação Inclusiva da Turma do Jiló é realizado nas escolas públicas. Ele conta com 5 eixos, com o objetivo de atender a toda a comunidade escolar:
- Primeira etapa: diagnóstico. Consiste em entrevistas com todos os professores e funcionários, todos os alunos (com e sem deficiência) e todas as famílias desses alunos. O objetivo é mapear as situações de preconceito: “o porquê que eles abandonam a escola, qual é a descrença na escolarização, quais são os medos desses professores, quais são as incapacidades e as dores. E aí a gente consegue tabular todas essas informações e começa a trabalhar”, pontua Carolina.
- As demais etapas do programa acontecem de forma concomitante. Um deles é o eixo de desenvolvimento profissional. Consiste na orientação dos professores e funcionários da escola. Tudo começa com um workshop de sensibilização e dicas de convivência com toda a diversidade que está dentro da escola. Os professores recebem também um curso de formação pensando na ensinagem e não na dificuldade de aprendizagem, onde aprendem o que são inteligências múltiplas, estilos de aprendizagem, gameficação de aula, comunicação não violenta e autoconhecimento do educador. “A gente cuida do professor, porque a gente acredita nessa figura. É ele o responsável por atender a individualidade de cada aluno”, sintetiza a fundadora.
- O terceiro eixo é o familiar. Consiste em atendimento psicológico, jurídico e empoderamento familiar, por meio de cursos como educação financeira e empreendedorismo. “Essas famílias têm a diversidade dentro da casa delas, e muitas delas não sabem quais são os direitos e os deveres que elas têm. Muitos pais também são analfabetos funcionais e já não encontraram na educação que eles tiveram alguma oportunidade. Um dos maiores problemas da evasão escolar do nosso país está relacionado a necessidade de trabalho. As famílias são marginalizadas, e quando as crianças estão prestes a fazer 14 ou 15 anos, as famílias pedem para as crianças irem trabalhar para ajudar na renda familiar e a educação fica para um segundo momento”, contextualiza Carolina.
- O quarto eixo é o trabalho pedagógico com os alunos. Por meio da música, são tratados temas como preconceito, inclusão e diversidade. “É como se fosse uma feira de ciências, mas é um festival de música, onde eles passam um ano estudando o tema e no final apresentam um projeto. A gente escolheu a música, porque com ela é possível incluir todas as crianças, até uma criança surda consegue entender a música, porque sente a vibração dos instrumentos”. Carolina destaca que a neurociência comprova que as artes e os esportes produzem hormônios como serotonina e ocitocina, os chamados hormônios do bem-estar. Dessa forma, é possível também atender quadros ansiosos e depressivos por meio da música.
- E por fim, o quinto eixo é um projeto de acessibilidade para a escola. Além da acessibilidade arquitetônica do local, por meio de espaços acessíveis a todos (com a construção de rampas, banheiros e sala de atendimento educacional especializada, além da adaptação do pátio da escola), neste eixo também são trabalhadas a comunicação e o material pedagógico utilizado.
Continuidade do projeto
No segundo ano, são trabalhados os replicadores. “Outras famílias e professores entram, e a escola precisa se apropriar da metodologia da Turma do Jiló”, lembra a educadora. Nesta etapa, são ministrados cursos para os professores que mais se identificaram ou que mais se destacaram com o projeto para repassar a metodologia da Turma do Jiló. “Com as famílias, a gente estrutura uma Associação de Pais e Alunos, onde as famílias que também aprenderam o conhecimento passam a ensinar para as famílias que estão chegando nas escolas. E os alunos com o Grêmio Estudantil passam a ensinar e a manter essa cultura dentro da escola. Assim fecha o projeto”, conclui Carolina.
Números e exemplos práticos
Em 2019, Carolina deu vida ao quarto ano do projeto e já vem acumulando histórias de sucesso. Uma das histórias que gosta de recordar com carinho diz, justamente, respeito a uma professora de história. Bastante resistente no começo aos ensinamentos, a educadora aos poucos se deixou transformar pela mensagem de inclusão. Foi então que a professora teve a ideia de gameficar uma matéria que estava tendo dificuldade de lecionar para uma de suas turmas, que incluía no total 35 alunos, dentre eles 4 com necessidades especiais: um autista, um jovem com síndrome de down, um adolescente com dificuldade auditiva e um quarto estudante com paralisia cerebral.
Ela desenvolveu então uma espécie de Minecraft de sistema feudal, incluindo a todos. Deu vida também a 3 provas diferentes, considerando a individualidade de cada grupo, e começou a fazer excursões com os alunos, gerando conteúdo sinestésico para a turma. Ao final do ano, a nota registrada pela turma, na avaliação padrão das escolas públicas aplicada durante o ensino médio, foi a mais alta apresentada em anos. Uma prova de que ensinar atendendo as particularidades de cada aluno se traduziu em uma comprovada melhora de aprendizagem.
Em outra experiência, Carolina pôde ajudar uma mãe com um filho com deficiência auditiva a entender e trabalhar a autonomia da criança: “Ela no início falava, ‘mas o meu filho não vai trabalhar, ninguém vai querer receber o meu filho’. Ao longo do ano, a gente foi dando os desafios e a criança hoje vai sozinha à padaria e para a escola, ela pega ônibus sozinha e essa mãe conta como mudou a vida dela”. A educadora destaca ainda a importância desta autonomia inclusive para o mercado de trabalho. “Hoje as empresas não conseguem cumprir a lei de cotas não é por falta de pessoas com deficiência, é por falta de currículo. Eles muitas vezes abandonam a escola”, contata a fundadora da Turma do Jiló.
Vale lembrar que o Brasil tem cerca de 30 milhões de pessoas com deficiência e a taxa de conclusão do ensino médio é de 6,1%. “É muito baixo! Então a gente tem uma porção de pessoas com deficiência no nosso país que não tem vida economicamente ativa e que teriam tudo para ser cidadãos economicamente ativos e contribuir com a nossa economia. Isso não é apenas um desafio de governo, mas de toda uma sociedade, que precisa entender e trabalhar esta individualidade”, completa Carolina.
E o investimento comprovadamente compensa. “A gente já conseguiu mensurar os resultados dos nossos projetos por meio de uma pesquisa científica. O grau de evasão escolar das escolas atendidas caiu de 37,7% em Santana do Parnaíba para 0,5%. As denúncias no ministério público praticamente zeraram, a situação de bullying dentro das escolas e de agressividade dos alunos diminuíram consideravelmente. A depredação das escolas não acontece mais, os alunos cuidam das escolas. Hoje, eles têm a chave das escolas, as escolas passaram a confiar nos alunos e nas famílias e eles usam o espaço nos finais de semana como local coletivo de recreação. Então a gente só colheu bons frutos desde projeto”, revela.
E é neste aspecto que Carolina ressalta a importância de iniciativas como a do Instituto Cyrela, que permitem que este ensinamento chegue a mais pessoas. “O Instituto Cyrela foi um presente na nossa vida! Primeiro, porque a gente compactua de valores muito parecidos de transparência e resultados, então a gente tem feito várias trocas e aprendizados juntos. O Instituto adotou uma escola e foi um passo muito importante para a gente, porque foi a primeira escola no município de São Paulo e a gente sabe que seria a porta de entrada para o projeto da turma do jiló poder virar política pública”.
Com o apoio financeiro do Instituto Cyrela, foi possível atender uma escola com mais de 1 mil alunos e, consequentemente, milhares de familiares, professores e funcionários. “Um trabalho que já está surtindo efeito, porque o ministério público de São Paulo foi visitar a escola e nós já estamos conversando com a secretaria de educação para virar política pública também no estado todo de São Paulo. O trabalho que começou em fevereiro já está no radar”, comemora Carolina. Para 2020, a expectativa é ampliar as escolas atendidas. Alguma dúvida de que este amor entre mãe e filho deu vida a uma transformação social?