Transformação social: projetos investem no digital durante a pandemia

Descobrir Brincando e Espro adaptam-se a metodologias online para dar continuidade a ações com populações vulneráveis

Uma coisa é fato: a pandemia acelerou como nunca a transformação digital. O meio online foi fundamental neste período de distanciamento social e, em muitos casos, trouxe muito mais praticidade ao nosso dia a dia.

No campo das ações sociais, as instituições precisaram se reinventar para continuar com suas ações direcionadas às populações mais vulneráveis. O Espro – Ensino Social Profissionalizante, com o apoio financeiro do Instituto Cyrela, iniciou em outubro um projeto piloto 100% digital do tradicional curso Formação para o Mundo do Trabalho (FMT), iniciativa que beneficiará 60 adolescentes e jovens de São Paulo em situação de vulnerabilidade social.

Outro projeto apoiado pelo Instituto Cyrela que passou por adaptação no período de pandemia foi o negócio social Descobrir Brincando, que tem como objetivo capacitar adultos (pais, mães e profissionais que atendem as famílias) a lidar com crianças de 0 a 3 anos para gerar uma transformação social.

Confira a seguir como estes projetos se adaptaram para o mundo online durante a pandemia:

Metodologias

Um dos passos mais importantes para a transformação digital em projetos sociais é a escolha da metodologia. Para Ana Maria Bastos, gestora e fundadora do Descobrir Brincando, não basta apenas gravar o conteúdo que seria dado presencialmente. É preciso adaptá-lo a um formato atraente. “Não é como um e-commerce, em que você apenas coloca o mesmo produto à venda em uma plataforma online. A verdadeira transformação digital é você mudar esse formato. Como eu consigo transmitir aquilo que eu fazia presencialmente de uma forma que faça sentido no digital?”, questiona Ana Maria.

No caso do Descobrir Brincando, foi realizado um projeto piloto chamado Jornada Online da Infância, apoiado pelo Instituto Cyrela. O objetivo é capacitar profissionais do programa de visitação domiciliar chamado Programa Criança Feliz. “Antes da pandemia, eles visitavam as casas das famílias participantes da iniciativa. Mas com o distanciamento social, todo este contato tem sido feito via WhatsApp e vídeo-chamadas”, explica Ana Maria.

Devido à familiaridade dos profissionais com o WhatsApp, toda a capacitação agora é feita através desta ferramenta. O produto digital desenvolvido pelo Descobrir Brincando é baseado na metodologia do nano learning. “O conteúdo é apresentado em doses mínimas. O projeto dura seis semanas e eles recebem materiais quatro vezes por semana, com meia hora cada. Em formato de áudio-novelas e histórias, é baseado na jornada do herói e tem uma metodologia muito inovadora. Estamos fazendo este teste justamente para conseguir engajar o profissional que está atarefado e não tem tempo”, relata.

Já o Espro organizou seu curso online com 25 encontros virtuais semanais, totalizando carga horária de 100 horas. “Ele está dividido em duas turmas de 30 jovens, sendo a primeira em outubro e a outra programada para novembro. Um dos diferenciais do novo modelo é propiciar aos participantes capacitação e inclusão digital, conteúdos exclusivos inseridos no módulo de aprendizagem”, conta Alessandro Saade, superintendente executivo do Espro.

A grade oferecida é bem completa e aborda, entre outros temas, mercado de trabalho, projeto de vida, convivência organizacional, comunicação e simulação de entrevista. Todo o conteúdo de treinamento será aplicado por um software interativo de webconferência com recursos focados em educação à distância.

“Desde o início, o grande desafio era trazer para o mundo virtual o que acontecia presencialmente, como a interação entre os jovens, a troca de energia durante os desafios e a condução dos nossos instrutores. Criamos encontros síncronos, onde todos os jovens se conectam no mesmo horário e fazem ao vivo as atividades com a coordenação de um instrutor”, revela Saade.

Outro desafio encontrado pelo Espro foi adaptar os conteúdos para que tivessem a mesma performance de maneira virtual. “Produzimos conteúdos complementares como enquetes, dinâmicas, infográficos e vídeos que usados de maneira alternada à condução em tempo real do instrutor, tornam as atividades mais dinâmicas e garantem a construção do conteúdo dentro da sala virtual de treinamento”, afirma o superintendente executivo.

Além disso, o projeto conta com o suporte online de psicólogos e assistentes sociais. “Enquanto discutíamos de que forma a assistência social participaria do programa, entendemos que deveríamos replicar de maneira virtual o ambiente dos nossos polos de filiais. Com isso, a qualquer momento o jovem pode acessar uma sala de orientação e será atendido por uma psicóloga ou assistente social ou agendar um atendimento para outro momento. Da mesma forma, independentemente de ser demandado, nosso time de assistência social conversa recorrentemente, de maneira individual ou em grupo, com os jovens durante o programa”, complementa.

Presencial x online

Qual é a diferença de atuar no online e no presencial? Ana Maria vê os dois ambientes como complementares. “Em 2019, com o apoio do Instituto Cyrela, fizemos capacitações presenciais ao longo do ano. Através desse contato próximo com os profissionais, pudemos entender as suas dores e o que poderia ajudá-los. Essa vivência foi fundamental para conseguirmos desenhar essa jornada de uma maneira mais assertiva. A experiência presencial nos deu subsídio para sentar e criar uma metodologia pensando muito na necessidade deste usuário, algo que é essencial quando você está criando um produto digital. Essa foi uma grande vantagem para conseguirmos dar um tiro mais certeiro”, pontua.

Saade acredita que uma das vantagens está no fato de cada um dos jovens estar em sua casa, mais protegido neste momento tão complexo do mundo. “Outra diferença é que como o jovem está na plataforma, a qualquer momento ele pode consultar conteúdos complementares mesmo fora do horário do treinamento em conjunto com a turma. Isso dá a ele uma vantagem absurda frente a outros jovens com dificuldade de acesso à informação”, justifica.

Ana Maria também vê que o produto digital oferece uma grande oportunidade para se trabalhar com escala. “Agora nós entramos em um novo patamar de trabalhar com escala. Nesse ponto, o presencial tem uma certa limitação. Nós conseguimos vislumbrar atingir uma escala significativa com um produto que realmente atenda às necessidades. O objetivo deste piloto é fazer todos os ajustes necessários e de acordo com os feedbacks”.

Para Ana Maria, quando se considera a transformação social, é preciso falar em escala. “Todos os investidores também estão olhando para isso. Como eu aplico meu recurso para que ele seja melhor utilizado? Mais gente vai ser atingida. Entramos aí num momento de potencial ganho de escala real. Nosso objetivo é trabalhar com escala e qualidade”, aponta.

Ações sociais para transformar problemas da pandemia

Embora a pandemia tenha aumentado o distanciamento social, o mundo não parou e quem precisava de ajuda se viu em uma situação ainda mais delicada. No caso do Espro, a Formação para o Mundo do Trabalho busca capacitar de forma multifacetada os jovens em situação de vulnerabilidade – algo importante diante das dificuldades do mercado de trabalho no momento.

“Assim entendemos que ao passar pelo nosso programa, ele deva sair com conhecimento básico tecnológico, com algumas competências técnicas e principalmente, comportamentais. Este cuidado foi levado para o digital. Outro ponto importante é que nesta formação ele passa a entender o universo do mundo corporativo, que não fazia parte da realidade dele. Nos encontros, ele aprende, por exemplo, como se vestir, como se comportar numa entrevista de emprego ou numa reunião, como enviar e receber um e-mail. São informações aparentemente simples, mas fora do radar deste jovem. Tenho certeza que será um grande diferencial para esses jovens. Se já era quando todos podiam frequentar uma sala de aula, será ainda mais agora, com a restrição de acesso e o isolamento social, o que nos deixa muito felizes e orgulhosos”, destaca Saade.

Já a Descobrir Brincando enfrenta outro desafio: trabalhar para que as famílias fiquem saudáveis e possam oferecer uma boa base para as crianças. “ Na pandemia, especialmente no início, circularam pela internet muitas atividades para se fazer com as crianças. E a reflexão é a seguinte: será que esse adulto, cercado por fatores estressantes, tem essa disponibilidade emocional e de tempo para estar o tempo todo brincando com a criança?”, questiona Ana Maria.
Ela faz uma alusão ao uso da máscara de oxigênio, em caso de emergência, em que antes é preciso colocar em si para, então, poder ajudar uma criança a ajustar o equipamento. “Nós acreditamos que há vários tipos de brincar e um deles – que é muito saudável, mas ao mesmo tempo pouco falado – é o brincar independente. É quando a criança brinca sozinha e o adulto tem um papel mais indireto. O adulto organiza um espaço adequado para esta criança e ela brinca por ela mesma”, revela.
Na Jornada, a organização do espaço é uma das orientações disponibilizadas para as famílias. “Como o adulto estabelece o espaço da criança e o espaço dele? É superimportante, no momento em que os responsáveis estão trabalhando de casa, estabelecermos espaços saudáveis para o adulto e para a criança”, comenta Ana Maria.

Resultados

Ambos os projetos tiveram início no começo de outubro, mas os resultados já são visíveis. “Os jovens estão se saindo muito bem. É um aprendizado para todos, inclusive para o Espro. Estávamos apreensivos por ser algo diferente, inovador para o setor, mas até o momento estamos muito felizes com o resultado. É um programa de impacto social que conseguimos migrar do presencial para o virtual, sem perder o acolhimento e a sinergia entre os participantes”, defende Saade.

Ana Maria também vê resultados práticos. “Apesar de estarmos na segunda semana, já tenho colhido alguns feedbacks superpositivos, justamente pela metodologia mais inovadora, já que eles estavam esperando um curso mais tradicional. A percepção que eu tenho hoje é de que eles estão se identificando com as histórias apresentadas. Com isso, estão conseguindo transferir para a prática diária deles e não ficar só na teoria”, conclui.